Os cidadãos da América Latina podem se identificar uns com os outros de diversas maneiras, mas poucas são tão palpáveis quanto as intensas ditaduras do século XX. No cinema, O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Infância Clandestina (2012) são bons exemplos de obras que exploram sujeitos afetados pelo regime, mas que não podem intervir no curso da história. Já produções como No (2012) mostram o lado de quem pode, ainda que pouco, optar diante das situações que lhe são impostas. Koblic (2016) é um desses.
Reeditando a parceria entre Sebastián Borensztein e Ricardo Darín, que
já pode ser considerada como cult em Um
Conto Chinês (2011), o longa acompanha o piloto da Força Aérea Argentina Tomás
Koblic (Darín), que foi recrutado para conduzir uma das missões que ficaram
conhecidas como voos da morte, nas quais oficiais lançavam prisioneiros
políticos ao mar. Ao decidir não abrir o compartimento de carga do avião para
que seus superiores pudessem concretizar o plano, também se tornou um
perseguido pelo regime.
Foragido, muda-se da capital para o pampa argentino, mais precisamente
na colônia Helena, na busca por um local onde não possam encontra-lo para
fazê-lo pagar por seu crime. Mergulhado em pensamentos, ele conflita-se sobre
suas escolhas e tenta levar uma vida relativamente normal como piloto de
aeroplanos pulverizadores de plantações, trabalho oferecido por um antigo
amigo, algo um tanto quanto despretensioso para um cinquentão que outrora fora
um oficial da armada nacional. Naturalmente sua presença forte, e seu relativo
charme, chamam a atenção do pequeno povoado, desde a moça que sonha em
descobrir o mundo, Nancy (Inma Cuesta), até o delegado corrupto, Velarde (Oscar
Martinez), que suspeita de Tomás desde o primeiro contato entre ambos.
Mostrando nítido amadurecimento de Borensztein frente a narrativa de
seu cinema, desde Um Conto Chinês
(2011), este não perde tempo e logo introduz todos os personagens nos primeiros
minutos, tornando a tensão e as desconfianças cada vez maiores. Após os
primeiros eventos que denunciam Koblic como um forasteiro, como o jeito de se
vestir, a fala e a recusa por deixar uma conta em haver mesmo que num vilarejo,
ele passa a conviver dia após dia com os olhares dos moradores. Principalmente
de Velarde, que se torna um carrapato em busca de pistas que condenem aquele
que o tornou um coadjuvante em seu pequeno reinado.
Mesmo que, por vezes, pareça arrastado, o filme exige grande atenção
do espectador para que este não se perca em meio a momentos de total silêncio e
outros de intensos embates verbais ou físicos. Como se os problemas pessoais de
Tomás já não fossem excessivos, a ação o procura, obrigando-o a assumir
decisões com grandes consequências num período muito curto. As atitudes que o
foragido herói toma em cada situação também o diferem daqueles que o perseguem.
No entanto, há uma atuação pela qual vale a pena ver este filme, e
esta é a impressionante caracterização de Martinez. O homem com o sorriso
amarelo está quase irreconhecível em função das camadas de maquiagem, peruca e
até mesmo dentes falsos. Este conjunto é completado por seus gestos e um
sotaque interiorano muito natural. Há também revelações, como o caso de Marcos Cartoy
Diaz, o assistente no aeródromo que cresce com o passar do tempo para se tornar
alguém importante. Em termos técnicos, o cineasta consegue criar momentos de
grande tensão em uma narrativa muito linear. Isso se percebe na opção de deixar
de lado fotos aéreas ou explosões, dando assim um toque de classicismo,
variando entre o desespero e a angústia profunda de maneira muito cativante.
Ao final, a mensagem consegue ser passada com até evidente nitidez. Koblic
se assemelha muito ao Capitão Nascimento de Tropa
de Elite (2007), tendo de conviver com a ideia de que as conquistas que o
acompanharam a vida toda foram reduzidas a quase nada quando percebe que a
vontade de seus superiores o torna mais uma peça da grande engrenagem.
Borensztein opta por deixar as mesmas pontas soltas que gerou no longa de 2011,
frustrando o espectador que anseia uma resolução mais clara. Mesmo assim, o modo
tenso e ao mesmo tempo revigorante em que a trama se desenrola não pode ser
subestimado, e Koblic é uma produção
muito peculiar e proveitosa dentro de suas limitações. Ricardo Darín prova mais
uma vez que sua figura dialoga com o público, mesmo que não diga nenhuma
palavra, enquanto que a revelação é mesmo Oscar Martinez, um dos atores mais
versáteis de sua geração.